Há dias, em grupo de amigos, deu-se o caso de a conversa cair na problemática ecológica.
Em dado momento, muito espontaneamente, evoquei a responsabilidade de todos nós perante as gerações futuras. Também elas, dizia eu, tinham direito a habitar a terra condignamente.
Julgava eu que tal responsabilidade constituía já uma ideia banal e óbvia nos tempos que correm. Parece que não será bem assim e ainda hoje não entendi a reacção de um recém-chegado ao referido grupo. Foi dizendo, embora numa expressiva linguagem de café, onde, aliás, nos encontrávamos: «Vou ao meu trabalho. Eu só tenho responsabilidade perante a minha vida; as gerações futuras que se arranjem e tratem da sua, como eu trato da minha». Tentei esclarecer o meu pensamento, mas já estava a estender-me a mão e a despedir-se com um formal «prazer em conhecer». Agradeci e correspondi.
Arrasto ainda comigo o natural constrangimento por que então passei. Intriga-me, porém, a hipótese de aquela inusitada atitude poder expressar, embora certamente por irreflexão, o pensamento de muitos.
Deixemos de lado as relações de proximidade temporal e conduzamos o nosso pensamento para a história. Não será preciso ter grandes conhecimentos para sabermos que, desde sempre houve acções que trouxeram consequências, positivas ou negativas, mais ou menos significativas, para as gerações seguintes. Muito do que somos – cada um de nós, cada país, cada civilização – é em parte fruto de acções, individuais ou colectivas, daqueles que nos precederam. O mesmo se passará com os nossos actos. Por insignificantes que sejam, eles deixarão a marca nas realidades que tocamos: desde que nascemos estamos a influir no processo da vida na terra. A consciência, tanto individual como colectiva, tem tempo de maturação e esta problemática, particularmente na vertente ecológica, está hoje na ordem do dia, envolve muitas e difíceis questões filosóficas, de ética e de política, e creio bem que irá estar ainda mais com a publicação da encíclica Laudato si do Papa Francisco.
Quanto me é dado saber, a tomada de consciência colectiva para com as gerações futuras aparece pela primeira vez, explicitada oficialmente, na Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco a 26 de Junho de 1945. Abre com esta solene declaração: Nós, os povos das Nações Unidas, decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; … Deixo ao leitor a tarefa de uma consulta particular para dar sequência ao texto.
Naquela altura estava em causa salvaguardar da guerra as gerações vindouras. Entretanto, outras ameaças começaram a pairar sobre a humanidade, mas, quanto sei, foram necessárias quase três décadas para que um novo documento internacional voltasse a referir a preocupação pelas gerações futuras. Foi com a célebre Declaração de Estocolmo saída da Conferência Internacional sobre o Desenvolvimento Humano realizada em 1972, em cujo preâmbulo se pode ler: Tornou-se imperativo para a humanidade defender e melhorar o meio ambiente, tanto para as gerações actuais como para as futuras. E, logo a seguir, no enunciado do primeiro princípio, afirma-se que o homem tem a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
Em vários parágrafos da encíclica Laudato si o Papa Francisco refere a nossa responsabilidade perante as gerações futuras e é ela explicitamente versada no Cap. IV (Uma ecologia integral) na parte relativa à justiça intergeracional, onde, curiosamente, cita uma carta pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, datada de 2003.
No espírito do Papa Francisco a preocupação pelas gerações futuras não é uma vaga ideia nem uma figura de retórica balofa, como já ouvi. Ela aparece associada a toda uma terminologia ético-jurídica de profundo significado: bem comum, destino comum, desenvolvimento sustentável, responsabilidade, dom gratuito e justiça: a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de vir. Por isso a solidariedade com as gerações futuras não é simplesmente uma atitude opcional. É um dever de justiça e nele se compromete a nossa própria dignidade de seres humanos. Parece impor-se assim a questão dos direitos das gerações futuras. Como se pode fundamentar o direito de seres inexistentes será outra questão. Lembremos, porém, que em 2012, a Oikos, organização portuguesa para a Cooperação e Desenvolvimento, juntamente com mais duas organizações internacionais, fez correr uma petição para que fosse criado, junto da ONU, um provedor de justiça que viesse dar voz aos interesses e direitos das futuras gerações.
Tudo está estreitamente relacionado com tudo, repete sistematicamente a encíclica. Os pobres de amanhã são já anunciados pelos pobres de hoje e pela nossa insensatez para com a Terra, a casa comum que outros terão de habitar no estado em que lha viermos a deixar. Chamada «verde» por alguns, a Laudato si é, eminentemente, uma encíclica social. Ou verde porque social. E eminentemente social porque integralmente humana.
Laudato si’, mi’ Signore pelos nossos irmãos das gerações futuras.
Guarda, 27 de Julho de 2015