Noite de Natal, fria, escura, estrelada e mansa.
Por aqueles povos da serra imensa ganhara fama a fogueira que nesse ano Valverde ergueria ao Deus Menino.
Para ela dera o comendador castanheiros centenários, giestas e piornos, que dez bois acarretaram o dia inteiro, e, mal anoitecera, os moços rolando, a ombro e a pulso, para o meio do adro, o tronco chamuscado e negro que, por um rito velho, ficara do último natal, acenderam-lhe à volta as labaredas altas dos primeiros ramos secos.
À roda de Valverde, nas cumeadas e pendores da montanha, por cabeços de outeiros e covas dos vales, até onde a vista abrangia, outras fogueiras brilharam crepitantes, à mesma hora, no escuro gelado da noite, como tributos ardentes que a serra ofertava ao Jesus Menino, a desagravá-lo dos gelos sofridos há dois mil anos no presépio de Belém.
Troncos que braços de dois homens não abarcam, convertem-se em brasas enormes, e rapazes valentes batem-nos com pinheiros verdes, levantando colunas de fogo donde se desprendem enxames de abe- lhas de oiro, que se perdem no céu escuro, acima do campanário afogueado.
Ai do avarento ou do rico que recuse àquele fogo o mais velho dos seus carvalhos, porque até as portas da casa lhe arrancam, para meterem na goela rubra do lume santo.
Moços, de pé, e velhos sentados em grandes pedras soltas, de faces para a fogueira, fazem largo círculo no adro, peitos e rostos a suar fogo, e as costas frias da geada branca que lhes vai caindo no dorso e fumega na terra e nos fatos, à volta do braseiro enorme.
Trinta léguas à roda, por vales e montes, as outras aldeias esqueciam momentaneamente as suas fogueiras, para olharem aquela gigantesca pira de chamas que afogueava a povoação de Valverde.
Passadas horas, as brasas enormes espalhadas no adro lembravam pedras vermelhas para a construção de um templo de fogo.
E mulheres e crianças acorrem com tigelas de barro, para levarem a sua brasa…
Assoprando-a, os lábios erguem nela a chama, onde acendem a luz da candeia que vai clarear a consoada, mas logo a enterram na cinza morna da pilheira, para atear o lume que fará as filhós da meia-noite e o arroz-doce do Natal.
Da benta fogueira se tiram, nessa noite e na manhã seguinte, os lumes de todos os lares; com eles se afugenta o frio de todas as casas, para que Jesus Menino, com a sua corte de anjos, passe gracioso, quente e alegre, a pôr um sorriso em cada presépio e uma prenda em cada sapato de criança…
Aldeia escura que não dê lume, como há-de vê-la e visitá-la o Deus Menino?…
E os anjos ajudam, do céu, a luz e o calor das fogueiras terrenas, espertando o fulgor dos astros, que cintilam mais na escuridão cerrada.
— Da minha lembrança – afirma um velho, todo aconchegado na lã grossa do capote — jamais cá houve uma fogueira tão grande nem uma consoada tão fria!
— A geada parece de agulhas!… — gemeu outro velho, voltando as costas brancas para o lume, onde estralejavam, como em arraial de fogo preso, as cascas dos pinhos, que derramavam um cheiro acre e resinoso, adoçado no aroma do alecrim.
Da serra e dos campos vinham assoadas rumorosas das últimas chuvas, que engrossaram ribeiras e riachos, donde se destacavam braços de águas a gorgolejar pelas valetas de Valverde, e do rio subia o ressoar dos açudes, onde rugiam ainda os ecos da tempestade.
Mas, pela meia-noite, como se todas as florestas ardessem e a terra húmida e quente fumegasse ao calor de tantos fogos, uma neblina densa e rasteira subiu do rio, enevoando a terra e o céu.
Do nordeste mal assoprava o vento no ambiente sossegado, mas a névoa era tão fria, que vidrava subitamente de gelo as árvores e os homens que cercavam o fogo.
Tornaram-se brancos os cabelos cristalizados dos moços e quando os vultos se aproximavam da chama vermelha a poeira da geada derretia, aljofrando-os de pequeninos rubis.
Em grupos, mãos dadas, a patinar no adro envidraçado, os rapazes brincalhões riam e trambolhavam no gelo, alegremente.
Os velhos, receosos, descalçada a puída sola dos sapatos, ficavam em coturnos de lã e regressavam a casa pelo braço dos moços, porque naquela idade perna quebrada era perna cortada.
E a neblina passava e repassava, cada minuto mais densa, a gelar o que tocava.
Das árvores vestidas pelo silêncio alvíssimo vinha o tilintar dos ramos leves cobertos de cristal, e, já tolhido de frio, ia abrandando o rumor das águas que desciam da montanha, a gorgolejar pelas valetas das ruas.
A névoa, rastejando, penetrara as correntes, desfiando e tecendo nos veios da água os fios da sua lã álgida e leve.
E, como se cada corrente se fizesse toa-lha branda, a prender-se, arrepiada, pelas franjas às ervas e às pedras das margens, logo o rumor da água amortecia, deslizando mais lenta e grossa.
Por momentos, nos pontos onde a água era mais funda e forte e nos declives rápidos onde a vida lhe corria melhor, a água foi resistindo, mas o frio cortara já, aqui e além, nos sítios planos e fracos, a força da corrente, e em breve o gelo lhe tolheu inteiramente o andar e a voz.
Ribeiros e riachos, como se a fada da neve os tocasse, converteram-se então em longas cobras de cristal serpeando das vertentes da serra até ao vale.
No meio do grande silêncio enevoado, onde de todo se velaram os campos, estrelas e fogueiras, só já se ouvia o mugir do rio, soberbo e vitorioso, sobre o qual a neblina estendia, debalde, a querer domá-lo, sucessivas camadas da sua álgida lã.
Mas pouco a pouco os mil ribeiros da serra congelavam, iam-lhes minguando forças e braços.
Tornou-se então menos arrogante o esbravejar dos açudes, e o rio orgulhoso, já de pele franzida no gelo, abrandou resignando os seus rumores de bravata, à espera da manhã em que o sol aliado chamaria à vida, em seu auxílio, as correntes da serra, que o frio triunfante adormecera.
— Só uma vez me lembro de um gelo assim — disse, para os moços, o único velho que ficara à fogueira. — Era eu garoto e íamos à missa do galo, recostados uns nos outros, de mãos dadas, para não escorregarmos no vidro das ruas…
— Com uma névoa destas — lembrou um gracioso — até o Menino Jesus se perde…
Mas no céu nublado, acima das fogueiras e dos campos, começou a dealbar um clarão que desmentia este receio.
Dir-se-ia que o Menino Deus, saudoso e clemente, caminhava devagar na atmosfera, cercado por anjos que, de estrelas nas mãos, lhe alumiavam os passos por entre a cerração densa.
Subitamente o vento enfureceu-se e mudou para o norte, esfarrapando as nuvens, e a lua em minguante, nascida tarde, cortava com o gume da sua foice a névoa, que debandava, em retalhos, para o sul, destroçada como batalhões em fuga após a derrota.
Os montes e os vales mostravam-se agora alvíssimos na prata fosca da geada, lavrada pelas fitas cristalinas e brilhantes dos riachos congelados que da serra desciam para o rio, e as fogueiras subiam e crepitavam triunfantes, dos povoados, como línguas vermelhas de vulcões irrompendo numa paisagem polar.
Cada arbusto e cada árvore era um lustre de cristal refulgente e tilintante onde a lua e as estrelas acendiam, por todo o céu, infinitos clarões, e, assim, os homens ateando o fogo, os anjos espertando as estrelas e a lua acendendo o gelo, alumiavam e aqueciam os caminhos a Jesus Menino, de visita a todos os berços e presépios do mundo.
Já dealbava a manhã quando os últimos devotos do lume retiravam.
Aos primeiros raios do sol, abriam os olhos e espreguiçavam os braços as ribeiras e os regatos, a acordarem do sono em que o gelo os prendera.
Por todo o campo, das fogueiras abandonadas, amortecidas, subiam agora, na atmosfera claríssima, colunas altas de fumo que o sol nascente azulava, e aos primeiros toques dos sinos, na hora matinal em que as crianças despertam, correndo, ainda tontinhas do sono, descalças, a tropeçarem nas camisitas longas, à busca das prendas, Jesus e os anjos embarcados em flotilhas de nuvens brancas deslizavam no céu azul, de regresso ao paraíso.
Nuno de Montemor, A Maior Glória, União Gráfica
Texto enviado por Gonçalves Monteiro