“Ler este livro vai lançar o leitor numa máquina do tempo, onde vai descobrir muitos aspetos da vida comunitária, costumes e tradições singulares, em torno de se obter ou confecionar alimentos”
Felismina Rito nasceu no Soito, concelho do Sabugal. Todo o seu percurso académico e profissional tem sido ligado ao mundo alimentar contemporâneo. É nutricionista, engenheira alimentar e biotecnológica e trabalhou na grande distribuição, na indústria alimentar e na investigação.
Além do interesse em dissecar os alimentos quanto aos seus nutrientes, à química e microbiologia, às características organoléticas, ao comportamento e efeitos, às utilizações, neste livro foi no encalço das histórias e evolução dos mesmos.
A GUARDA: O que a motivou a escrever o livro?
Felismina Rito: O conteúdo não nasceu propriamente para livro, nasceu de uma pesquisa para conhecer e perceber mais sobre a gastronomia local e para desmistificar algumas afirmações imprecisas sobre a mesma.
O que motivou essa pesquisa foi a natural curiosidade e vontade de aprender mais e sendo esta uma temática que me é cara, queria respostas fundamentadas. Mas é uma área difícil, onde há poucos registos, sobretudo quando a análise e estudo estava circunscrita ao concelho do Sabugal.
Fui colecionando trechos de autores concelhios, ou não concelhios, mas que escreveram sobre o mesmo, nesta temática. Sobre alguns alimentos e pratos, havia muito mais a contar. Outras histórias, pormenores, detalhes e curiosidades. E também as fui registando.
Mais tarde, na sequência de projetos e partilhas e dos habituais empurrões de quem nos quer bem, ou nos quer ver stressados (risos), começou a nascer a ideia de publicar…
A GUARDA: Porquê o título “Cozinha Transcudana” e o subtítulo “Arraiana de Ribacoa”?
Felismina Rito: Queria localizar o património gastronómico e descobri uma ampla controvérsia sobre a definição de Transcudanos, curiosamente também de Arraianos (verbal) e de Ribacoa.
Não sendo esse o objetivo do livro, adotei definições de autores que considero de referência e avancei.
Transcudanos, chamaram-se em tempos anteriores à época portuguesa, os povos que habitavam numa das margens do rio Côa. Esta referência pretendeu evidenciar uma vasta herança cultural que sentimos até hoje na gastronomia (colorau espanhol, galhetas, rabanadas, etc.), no linguajar, na capeia e encerro, na música onde o fado toca junto do flamenco ou do passodoble, etc..
Arraiana pela emoção e ligação à Raia e seu espírito e sendo genericamente a raia a fronteira de um país ou região, e estando todo o concelho do Sabugal estabelecido nessa fronteira, o Sabugal é no seu conjunto um concelho raiano; de Ribacoa que corresponde a vários concelhos no distrito da Guarda, Beira Interior Norte.
Quero esclarecer que se tivesse escolhido outros autores de concelhos vizinhos para analisar, haveria com certeza muitos vínculos, relações e elos comuns nesta “nossa” gastronomia, pelo que não se deve falar de exclusividade.
A GUARDA: De forma resumida, de que trata este livro?
Felismina Rito: Trata da cultura gastronómica transcudana que valoriza os produtos e as receitas, mas também a partilha de refeições com a família e amigos, o estímulo à criação de laços entre as pessoas, o convívio, as celebrações, as festas, a transmissão de saberes, as trocas comerciais, o contrabando, as histórias à volta da mesa!
Mas também de detalhes como os vários termos usados para identificar matérias-primas e seus pratos resultantes.
Ler este livro vai lançar o leitor numa máquina do tempo, onde vai descobrir muitos aspetos da vida comunitária, costumes e tradições singulares, em torno de se obter ou confecionar alimentos com técnicas totalmente distintas das atuais e sabores diferenciados, o que os torna património desaparecido.
É abordada a conexão ao rio Côa, à terra e à natureza, e deslindada uma produção verdadeiramente sustentável!
Mas também fará refletir o leitor, interrogar-se, talvez opor-se e/ou talvez debater algumas teses! Porque quando procuramos o passado e quando ele tem falhas, construímos explicações e teorias. Algumas já foram analisadas no livro e partilhadas de outros prismas. Outras, esperam por conversas e partilhas entusiasmadas.
A GUARDA: Faz sentido apresentar este livro no âmbito da programação da Feira do Touro e do Cavalo, que acontece este fim-de-semana no Soito?
Felismina Rito: O lançamento naturalmente teria de ser no Soito, que faz sentido porque sou natural de lá.
A Feira do Touro e do Cavalo é um evento cuja temática, como já tive oportunidade de explicar anteriormente, também será eventualmente fruto dessa vasta herança cultural transcudana.
Mas também faz sentido pelo reencontro e reunião familiar e de amigos que proporcionam as festas das localidades, e que nestas ocasiões especiais, queremos junto de nós.
A GUARDA: Este livro é também uma forma de promover o concelho do Sabugal?
Felismina Rito: Sendo um estudo do contexto do Sabugal na vertente gastronómica, pode ajudar a promovê-lo. Na Estratégia para o Turismo 2027 continuam a surgir entre os dez ativos estratégicos do turismo nacional, a gastronomia e vinhos.
A gastronomia é um elemento cultural e turístico essencial e muitas regiões beneficiam ao mostrar pratos, ingredientes e tradições culinárias locais. Na atratividade turística, as refeições são parte significativa da experiência da viagem e os festivais de comida, as rotas gastronómicas e os eventos culinários, movimentam pessoas e economias locais.
Além disso este património é uma expressão da nossa identidade e o livro uma garantia da sua preservação cultural.
Mas localmente ainda há muito a fazer sobre a mudança da perceção e valorização estratégica do património gastronómico e é um processo gradual.
A GUARDA: Sendo uma das suas áreas de trabalho a nutrição, aborda-a nesta recolha?
Felismina Rito: Sim, abordo esse lado da nutrição no livro. Por exemplo, falo da reputação e tendências da alimentação; da exclusão total de consumo esporádico de alimentos diabolizados, preferindo alimentos processados que além de gorduras saturadas, podem ter açúcares, sal e muitos aditivos; das fartas mesas versus as sóbrias e moderadas; da eventual substituição de ingredientes maléficos por benéficos; do envio de frutos secos bastante calóricos nas embarcações que providenciariam um bom aporte de energia aos navegadores, além da sua boa conservação e diminuta armazenagem, etc. Em várias partes do livro procuro nas ciências da nutrição, as tais explicações.
A GUARDA: Na sua opinião, o Sabugal tem festivais de comida, rotas gastronómicas e eventos culinários onde possa agora aproveitar-se esta recolha?
Felismina Rito: Sem dúvida. Por exemplo a Confraria do Bucho Raiano que decidiu destacar um enchido de grande relevância no passado, com o compromisso da sua defesa e promoção, creio ter agora alguns elementos novos para analisar. O mesmo se passa com a Confraria do Cabrito na Brasa, cujo produto é também um ex-libris do Sabugal.
Teoricamente é também possível reativar a rota gastronómica descontinuada (Roteiros Gastronómicos, Sabugal à mesa) e com esta recolha, poder-se-ia dar largas à imaginação e inovar vários aspetos em relação à última edição realizada. Ou até mesmo a Festa das Milharas do Ozendo. Creio que tem um grande potencial.
No livro, há também uma festa já extinta, que ganhou um nome ligado ao pão e em última análise, poderia ser recriada.
A GUARDA: Sendo o concelho do Sabugal um concelho com muitas freguesias e não existindo autores de todas elas, todas as freguesias são mencionadas no livro?
Felismina Rito: Sim, claro que não são através de autores de todas elas, mas no final do livro faço quatro compilações datadas. A primeira fala da alimentação descrita nos forais Manuelinos (1510-1515), a segunda das Memórias paroquiais de 1758 nos concelhos de Alfaiates, Sabugal, Sortelha, Vila do Touro e Vilar Maior, a terceira do Dicionário de Portugal antigo e moderno de 1873-1890 e a quarta do Dicionário Enciclopédico das Freguesias em 1997. A primeira compilação fala apenas das sedes de concelho na época, mas as últimas três retratam a maioria ou todas as freguesias do concelho. Além disso é feita uma análise de todas as compilações, o que me permitiu explorar freguesia a freguesia.
A GUARDA: Sendo um livro com esse contexto geográfico específico, porque acredita que despoletará interesse?
Felismina Rito: Para conhecimento da cozinha transcudana e isso interessa aos exploradores da culinária de diferentes regiões e culturas, sobretudo na sua procura incessante de inovações.
Também a familiaridade com um contexto geográfico específico pode atrair leitores que têm conexões pessoais ou curiosidade sobre essa região. Mas apesar da análise ser deste contexto, muitas históricas e detalhes são comuns não só a esta região.
E não sendo um tradicional livro de receitas, mas antes um compêndio que agrega ingredientes, técnicas culinárias, termos usados, a obtenção e alguma química dos alimentos, as questões de nutrição e segurança alimentar, entre outros parâmetros, vai despertar interesse para aprofundamento teórico e técnico dos que querem saber sempre mais.
Acredito também que alguns o procurem para estimular a inspiração e criatividade para criar pratos ou eventos ou para adaptar receitas existentes no mesmo.
Em resumo, creio ser um livro valioso pela riqueza de conteúdos, pelo que convido todos a ler (sorriso).