Não é a primeira vez que um autor reúne num único volume obras de modalidades diferentes
, normalmente a poesia e a prosa. É também o caso de Cândido José de Campos, com este Cantos e Contos acabado de publicar pela Editora Calçada das Letras. A primeira parte, Cantos, é constituída por 30 poemas; a segunda, Contos, agrupa 15 textos com maior ou menor efabulação mas que genericamente se podem chamar contos. O volume é apresentado de forma sequencial, sempre da esquerda para a direita, todos os trabalhos – tanto de prosa como de poesia – se iniciando sempre em página ímpar. No Índice – que não tem essa designação – não há qualquer classificação dos mesmos, mas tão só uma diferenciação de página: na página 114 listam-se os poemas, na página 115 os contos.
Refiro estas características formais, de regularidade e harmonia, como um elogio. É que nem sempre assim é. Autores há que, reunindo obras com estas características, as dispõem graficamente de forma inversa no volume: quer dizer, por qualquer dos géneros por que se inicie a leitura depara-se sempre com a segunda obra de pernas para o ar. Nestes casos poderemos dizer que o livro não tem contracapa. Poderemos ainda referir que em Cândido José de Campos se não coloca igualmente o bem mais importante problema da definição do género: livros há em que no fim da leitura não sabemos se aquilo é prosa ou poesia.
Deixemos, no entanto, estas características formais e centremo-nos no que é relevante: a congratulação perante esta nova obra de Cândido José de Campos. Este Cantos e Contos vem a público depois de uma demasiado longa ausência do Autor e reúne as modalidades em que ele já tinha publicado obras anteriores. Eu creio que Cândido José de Campos é sobretudo um poeta: contando como tal um livro colectivo em que ele tem uma participação autónoma, até no título, este volume é, na parte poética, o seu 14º título; ao passo que, no capítulo do conto é apenas o 4º. O que há de celebratório nesta publicação é que o seu anterior volume de poesia era de 2002 (surgido depois de um intervalo de sete anos) ao passo que o anterior título de contos datava de 1990.
Louvores sejam dados ao Autor que, com este tão longo período sem publicar, não perdeu a mão para a escrita. Tanto na poesia como na prosa estes Cantos e Contos estão perfeitamente ao nível das melhores obras anteriores de Cândido José de Campos – eis a síntese e o essencial do meu parecer, que gostosamente exprimo. Talvez se lhes possa verificar, tanto nos poemas como nos contos, um certo tom de balanço, de juízo sobre uma experiência, como quem conta histórias num tempo indefinido – mas isso é apenas o resultado dos anos que para todos passaram e também para ele. Não há ali a menor quebra qualitativa.
Cândido José de Campos é um homem dotado do dom da concisão. Os seus poemas no geral são pequenos: eles vão desde o dístico de dois versos (Frater, na página 47: «Na arcada entre o meu tempo e o meu espaço / Assenta o capitel do meu abraço»; Crepúsculo, na página 61: «Olho a tarde envolta em neblina / Será o nevoeiro nossa sina»; Alvorada, na página 69: «Um riso cristalino de criança / Faz acender em mim de novo a esperança») até ao soneto, de molde inglês, de que há no livro três composições. (Os maiores são, no entanto, 3 poemas de 4 quadras.) Em 30 poemas, 15, exactamente metade, são constituídos por uma única estrofe, a maioria deles uma quadra em redondilha maior.
Os temas abordados nestes poemas são bastante variados, desde a efusão lírica e amorosa, o diálogo com a divindade, a observação sentenciosa e moral, a recordação sobre o próprio fazer poético. Que de todos fique, como exemplo da sua qualidade, o da página 43, «Manhã: Despenteia o sol o horizonte / Num desalinho rubro de alvorada / A debuxar em mim de novo a ponte / Entre viver o tudo sem ter nada.» Ou o último – já que não posso transcrever os sonetos, todos muito bem conseguidos -, na página 71, «Amanhã: Eis o verso que não surge / E a rima que não desponta / Já que em mim o tempo urge / Num hoje que desaponta // Na brancura do papel / A palavra se desenha / Enquanto a mão em tropel / Não tem freio que a detenha / Vai cavalgando o poema / Que de novo se liberta / Despido de forma ou tema / No cinzel de ser poeta // Rompe a mudez do granito / Na catedral da manhã / Liberto de qualquer mito / De quem nasceu Amanhã». («Eu nasci amanhã» é o título de um seu livro de poemas, de 1986.)
Por último refira-se que Cândido José de Campos não teve necessidade, ao longo destes 30 poemas, de usar um único sinal de pontuação – o que é, aliás, uma característica da sua poesia que desde sempre lhe conheço. O verso sai-lhe certo, definitivo, sem necessidade de qualquer indicação adicional.
Mal seria que nada dissesse sobre os Contos. São de extensão e temática diversas, umas mais elaboradas que outras, reportando a um ambiente familiar e já bem recuado no tempo que algumas dedicatórias apenas confirmam. Que algumas daquelas histórias têm a ver consigo é mais do que evidente, apesar de o Autor utilizar expressões genéricas ou vagas: «Há já uns bons sessenta anos, ocorrera na aldeia onde meu pai nascera», é o que de mais concreto ali se consegue encontrar. Mas Cândido José de Campos é capaz do desenlace imprevisto e mesmo de um certo absurdo ou inexplicável. O léxico é muito cuidado e adequado.
O trabalho de que eu mais gosto é Levitação em que a Senhora Dona Brites de Lanhoso pagou caro a rolha de cortiça com que quis condicionar as ventosidades intestinais do bom do Tonico. Nem a Santa Filomena lhe valeu! Também a Chuva miudinha, sobre um processo de envelhecimento, me parece muito bem contada. O último trabalho, Miguel, possui uma grande densidade filosófica e poética mas é de todos, talvez, o que menos merece o nome de conto. Compreende-se que seja o preferido de muitos leitores e também – quem sabe? – do próprio Autor, que decerto o poderia desenvolver ou desdobrar.
Este volume apresenta-se com uma nota de Mesquita Brehm na badana da contracapa – a meu ver pouco adequada à função proemial ou de comentário da obra – e cinco excertos de recensões sobre outros tantos livros de Cândido José de Campos: 4 de poesia e 1 de prosa.
Em alguns aspectos, em particular na segunda parte, a revisão pecou um tanto por defeito. Nas páginas 74/75 hesitou-se bastante sobre a forma de marcar o início dos parágrafos, critério em que verdadeiramente nunca se acertou. Na página 85 não se percebe muito bem qual é uma e outra das personagens aí referidas. E na página 103 há mesmo um lapso: «graças aos esforços do teu melhor amigo que te se opôs» não está certamente como Cândido José de Campos o quis escrever.
Mas estes são pormenores de pequeníssima importância – de que não deve curar o pretor do ditado romano. Deste Cantos e Contos só há que dizer bem – e por ele justamente felicitar o seu Autor, Cândido José de Campos. Que ele não consinta que este seja título único no catálogo da Calçada das Letras! Os seus leitores não lhe poderão perdoar nova ausência, assim tão demorada. (E eu sinto-me honrado em me fazer intérprete desse tão justificado sentimento.)