Pontos de Vista
Clara Ferreira Alves (CFA), na sua última crónica na Revista do Expresso (edição de 30 de Novembro de 2019), escreveu o que, com a devida vénia, passo a transcrever: “Alguns dos melhores escritores estão a viver em Hollywood e a escrever ficções para televisão. Scott Fitzgerald e William Faulkner também o fizeram, sem sucesso no meio. Eram os tempos da grande literatura, hoje quase extinta. Enquanto a literatura estagnou e se interessou por questões identitárias, exaltando os escritores africanos, asiáticos e todos os pós-coloniais, por ser a coisa certa (…), a televisão avançou sem medo para temas opostos (…). Ignorando a ditadura identitária ou minoritária, a televisão foi explodindo tabus”.
Estas considerações sobre as séries televisivas concebidas por mulheres, “preferencialmente integradas nas categorias negra, pós-colonial, lésbica ou trans” com a intenção confessa de fazer “explodir os tabus” que, apesar de os denunciar, a literatura não lograva dissolver, acordaram a minha atenção.
Isto porque, nestes últimos tempos, têm sido precisamente objeto das minhas leituras muitos dos nomes mencionados por CFA e alguns outros mais (africanos e asiáticos, mas não só) que ela não refere, que se situam precisamente no tratamento de temas identitários.
Foi o caso do celebrado autor judeu-americano Philip Roth com “The Human Stain” (de que já aqui falei) e também dos dois romances da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O primeiro que li, na edição francesa da Folio, tem o título “L´autre moitié du soleil” (em português está publicado sob o título “Meio-Sol Amarelo”). Foi uma excelente surpresa apesar das boas referências que já tinha colhido da autora junto de fontes credíveis. Tendo como pano de fundo as convulsões políticas internas na Nigéria e a guerra do Biafra, a autora dá-nos a conhecer os afrontamentos e os ódios que dividem as diferentes etnias do país, marcado por desavenças tribais e religiosas que, nas horas do confronto, o tornam ingovernável. Corrupção, violência e atrocidades marcaram aquela década de sessenta. Lembro-me dos ecos que a Luanda, onde eu cumpria o serviço militar, chegavam da guerra do Biafra, das atrocidades e da fome que mataram mais de um milhão de pessoas. Mas o livro é muito mais do que isso. Com uma galeria de personagens fascinantes, onde sobressai o par amoroso Olanna-Odenigbo e sobretudo a figura muito bem conseguida do jovem “criado” Ugwu (que numa espécie de voz off conduz a narrativa), vamos assistindo á evolução da sociedade nigeriana, primeiro em tempos de paz e depois em plena guerra. Num universo dominado pelo homem, é-nos, todavia, apresentada a face culta de uma nova geração de universitários, totalmente à margem da sociedade tradicional, onde homens e mulheres se olham com igualdade e respeito. Mas, na hora das grandes decisões e dos conflitos, vêm à superfície velhas crenças, superstições e práticas para lançar maus olhados ou para, por exemplo, tentar resolver problemas de infertilidade (que para estas comunidades em mutação é da máxima importância).
O outro romance de Chimamanda que também li com prazer e proveito foi “A Cor do Hibisco” publicado em Portugal pela D. Quixote, escrito, aliás, antes de “Meio-Sol Amarelo”. Ali se retrata o destino de uma jovem traçado entre um microcosmo dominado por um patriarca autoritário e repressivo e o seio familiar de sinal oposto de sua tia, onde se abrigara depois de um feroz golpe militar. Foi a partir daí que ela conseguiu construir a sua identidade de mulher livre e com horizontes mais abertos do que os que pudera vislumbrar em casa de seus pais.
Vindo de outro universo, li ainda o romance da escritora argelina Kaouther Adimi intitulado “Nos Richesses” nas Éditions du Seuil (ainda sem tradução em português) sobre uma livraria-editora em Argel. Para isso acompanha a vida do seu criador, Edmond Charlot, que, em 1935, com vinte anos, deu vida ao seu sonho de criar uma livraria – casa de edição em Argel, um espaço dedicado à literatura, à amizade e ao Mediterrâneo. Nesse percurso de vida da livraria, por onde passaram grandes nomes da literatura e da cultura da época, a escritora relata acontecimentos variados em forma de notação diarística mas impressiva, principalmente a respeito da guerra da Argélia, num contraponto permanente entre a juventude argelina que defendia a independência do seu povo e o poder francês que queria manter o status quo.
E, prosseguindo neste roteiro extra-muros, estou agora a acabar de ler o livro da autora indiana Shilpi Somaya Gowda, “Un fils en or” (Edições Folio, ainda sem tradução em português). Apesar do seu título delicodoce, a obra suscita importantes problemas identitários. Gira em torno de dois polos: por um lado, Anil Patel, jovem médico filho mais velho de uma família respeitada, que consegue ser escolhido para fazer o internato num Hospital de Dallas, nos EUA; e Leena, filha única de agricultores pobres, que é vítima indefesa de um casamento arranjado. Como seria inevitável, o livro aborda o problema das castas e, de forma chocante, relata o estatuto da inferioridade das mulheres na Índia, submetidas ao domínio e à opressão dos maridos, constituindo um libelo fortíssimo contra os casamentos arranjados.
Depois do descrito, por certo os meus leitores perguntarão: e então qual é o problema?
Não é obviamente “problema” – CFA tem seguramente mais créditos do que eu para tratar esta questões… – mas é um reparo quanto à maior “eficácia” que ela atribui à televisão na destruição de barreiras culturais contranatura relativamente à literatura e seus meios interventivos e reformadores. É certo que a imagem, e por maioria de razão, as imagens “animadas” e dirigidas para determinados fins, têm um impacto e um imediatismo que a letra lida não tem. A literatura exige uma capacidade de imaginação por parte do leitor que os meios audiovisuais quase dispensam. As emoções visionadas são de reação quase instantânea por parte de quem vê e não saltam das páginas dum livro com a mesma acutilância com que nos ferem os olhos. Neste particular de reação às injustiças, violações e violências de caráter sociocultural vide étnico, de género ou simplesmente de grupo, é de sublinhar o duplo caráter que assume o “visual” quando os movimentos transbordam para as ruas: são as marchas peticionárias, as mensagens em letras gordas multiplicando-se por cartazes, bandeiras e palavras de ordem inscritas por tudo o que é suporte visível. Grita-se, canta-se mas também se distribuem panfletos, comunicados, abaixo-assinados. Claro que estas não são as letras com que se escreve a “literatura”, na sua definição canónica. Mas é esta que, no trato das gerações, no rastreio das chagas e avatares sociais, no relato das opressões, na denúncia das violações escondidas ou esquecidas, no historiar das gerações perdidas e das misérias contumazes, dos conflitos humanos e nos tsumanis da História, nos chamamentos à ética, à moral, à verdade e à compaixão, radical ou inclusiva, individualista, exclusiva ou cúmplice, é a palavra que, na letra, na metáfora ou no relato exemplar, desde o fundo dos séculos e à roda do mundo, persevera, combate, condena, redime… scripta manent!
Lisboa, 6 de Dezembro de 2019