Peço desculpa – O meu Portugal veste de negro
Há coincidências que não sei explicar.
Nem sei se há coincidências que se possam explicar. Será que há coincidências? Por que razão dizem alguns que não há coincidências? Mas de que falamos quando falamos de coincidências? De coincidências físicas? De coincidências humanas, sociais, psicológicas ou existenciais? Será verdade, como afirmam as boas correntes da velha filosofia, que nada acontece sem uma qualquer razão do acontecer? Será a nossa ignorância a razão das coincidências que se atravessam no nosso caminho? Será que chamamos coincidências ao império da nossa ignorância? Mas como poderemos saber da nossa ignorância, se de ignorância se trata? E não seremos nós a ignorância personificada quando nos recusamos admitir os nossos erros e as consequências dos nossos actos? Não andará por aí um campo de coincidências em que podemos asfixiar se não tivermos a coragem de abrir asas e voar na direcção da verdade das estrelas?
Peço desculpa por esta cadeia cansativa de perguntas. De perguntas que poderiam continuar numa sequência infinita. Porque é bom perguntar, regressar à infância e levantar de novo aquelas perguntas, mesmo ingénuas e sem aparente sentido, para podermos despertar do sono em que tão facilmente nos deixamos cair, julgando-nos atravessar o melhor dos mundos. Mas vamos ao caso. Ou aos casos, que são tantos. Casos de coincidências.
Poderia ser, mas não vou falar da coincidência de o fogo de Heráclito se lembrar de descer à terra e pintar de negro o meu Portugal. Poderia ser, mas não vou falar daquele dia em que, por coincidência fatal tudo pareceu falhar. Não, poderia ser, mas não vou falar da coincidência de o fogo se atear quase em simultâneo em tantos espaços e lugares, deixando na miséria e morte tantos cidadãos do meu Portugal. Também poderia acontecer, é verdade, mas não vou falar da coincidência… Chega. Parece haver tantas coincidências a virem ao nosso encontro que chegam a cobrir de fumo negro o nosso entendimento. Razão tem o Presidente da República do meu Portugal, e nós com ele, quando fala de «tamanha confluência de catástrofes».
Fique, então, a enumeração por aqui. Deixo ao leitor a tarefa de as evocar, mesmo que tenha de proceder a uma pausa na leitura destas letras desalinhadas.
Mas vamos ao caso. É um caso meu, desculpe. O leitor poderá ter os seus. Estava eu com um livro nas mãos. Um livro recente de um dos melhores escritores das nossas letras. Assim o creio eu, como o crêem muitos outros com juízo literário bem mais afinado do que o meu. Estava eu a percorrer O Caminho Imperfeito de José Luís Peixoto, tão recentemente aparecido nas livrarias, quando dei comigo a evocar o caminho mais que imperfeito dos nossos desvarios pátrios. O fogo já havia sido extinto e o negro das montanhas e as casas em ruínas, ainda fumegantes, lá estavam a testemunhar a crueza da tragédia, a dor de todos e o heroísmo e a fortaleza de tantos, deste meu Portugal.
Desviei-me? Peço desculpa, regressemos, então, ao meu caso. Coincidência, mas o texto de O Caminho Imperfeito de José Luís Peixoto veio cruzar-se com os textos dos caminhos mais que imperfeitos dos palcos da retórica do poder. Ou dos poderes.
Interrompo a leitura do livrinho e ligo o televisor para saber como ia o mundo deste meu Portugal. E ouço: «Se me quer ouvir pedir desculpas, eu peço desculpa». Coincidências, pensei eu, mas não devo ter ouvido bem. Ainda tinha o comando na mão e, por impulso imediato, retrocedi um pouco. «Não vou fazer um jogo de palavras. Se me quer ouvir pedir desculpas, eu peço desculpa», voltei a ouvir. No dia anterior, havíamos ouvido o Presidente da Repúblico dizer solenemente ser importante «reconhecer com humildade que portugueses houve que não viram os poderes públicos como garante de segurança e confiança» sendo por isso «justificável que se peça desculpa às vítimas de Junho e Outubro.»
«Não vou fazer um jogo de palavras. Se me quer ouvir pedir desculpas, eu peço desculpa.» Pediu o primeiro-ministro desculpa às vítimas e ao país? Peço desculpa, mas o chefe do governo fez de facto um «jogo de palavras». Basta atender ao condicional do seu discurso: «se me quer ouvir…». Se depois afirmando que «desculpas» é uma expressão que só usa na vida privada e que para a vida pública prefere «responsabilidade», trata-se, se pedido é, de um pedido esfarrapado a navegar naquela «fragilidade» acusada pelo Presidente da República. É um pedido que parece não sair do coração, mas da pressão circunstancial. Mais do que um pedido de desculpa, é desculpabilização. Ao pedido de «humildade cívica» feito pelo Chefe do Estado responde o chefe do governo com arrogância teimosa de uma desculpa que me traz à memória o dito latino: Dum excusare velis, accusas. Já que as nossas escolas abandonaram o latim, importa traduzir: quando pensas desculpar-te, estás a acusar-te.
E volto a O Caminho Imperfeito de José Luís Peixoto, agora para o citar: «cuidado com a autojustificação – esse medo de perder o que achamos que adquirimos. Somos os principais carcereiros da nossa liberdade.»
Todos somos pedintes. Passamos a vida a pedir. Pedimos de tudo. Por cortesia, e porque queremos assumir a responsabilidade dos actos e a culpa dos males feitos, todos os dias vamos pedindo desculpa, por isto ou por aquilo; pelo que fazemos, pelo que não fazemos e por aquilo que nos acontece.
Peço desculpa, mas ainda me atrevo a uma pergunta final: porque será que é tão difícil pedir desculpa quando ela se conjuga com o poder?
Se encontrarmos a resposta verdadeira talvez possamos descobrir uma vereda que nos conduz a O Caminho Perfeito. Então deixará de haver luto e o meu Portugal voltará a florir.
Guarda, 21 de Outubro de 2017